Você já reparou na cicatriz delicada que ela tem nas mãos? Ainda me lembro como ela a conseguiu. Durante uma tarde de um calor infernal, ela resolveu se refrescar no banheiro da área de churrasco, mas a combinação catuaba com cerveja subiu a cabeça dela. Lembro-me do sorriso malicioso que ela deu, enquanto tirava a roupa, me olhando do outro lado do banheiro. Vê-la nua sempre me roubou o ar, e naquele dia, eu não conseguia nem piscar. No entanto, quando ela foi entrar no boxe, bateu com a cabeça no mármore, e a mão se arrastou uns centímetros pelo o azulejo da parede e uma pequena fresta mal assentada lhe arrancou sangue. Na hora ela não ligou. Parecia que o tesão dela só havia aumentado, mas a cicatriz insistiu em marcar a pele dela como uma lembrança.

Assim como a cicatriz da boca. Aquela mínima cicatriz embaixo do lábio inferior, que mais parece uma assinatura do destino, lembrando-a de ter limites e que sempre é necessário pensar bem nas decisões que for tomar. Eu ainda me lembro do tombo foda que ela levou, pisando na barra da saia longa, e batendo com tudo o rosto do vidro do carro. Se eu não tivesse lá, não teria acreditado na cena que se desenrolou. O aperto que abraçou meu coração por alguns segundos, foi desfeito quando ela sorriu, toda envergonhada e decidiu que precisava ir para a casa. Ela riu tanto naquele dia! Meu corpo até se arrepia ao lembrar da felicidade pura que ela sentia, ao rir de si mesma, e assumir, que vodka com suco de maracujá não combinavam com o jeito solto dela.

E as cicatrizes do joelho? Aquele dia foi um tombo só. Ela e uma amiga se desequilibraram nos saltos, e ela caiu de joelhos, ralando os dois vagarosamente. Não conseguiu usar calças por semanas, e o shorts entregavam os machucados infantis. As marcas ficaram como um lembrete de que salto e bebida não são uma boa dupla. Recordo-me do abraço caloroso que ela me deu, e dos beijos sôfregos trocados nos corredores daquela boate escura da cidade, que hoje já fechou faz tempo. Ela sempre foi tão intensa e entregue nas escolhas que fez, que quando a convidaram para subir no palco e ver quem conseguia tomar mais tequila na boca, ela animou de pronto e ganhou, disparado. Nunca houve tanto limite na vida dela, e embora isso incomodasse as pessoas, a mim sempre foi afrodisíaco e encantador. Ela sempre foi mais ela do que qualquer outra pessoa, e só gastava seu tempo assim.

Por fim, a cicatriz da canela. Dessa vez não teve bebida, ou desculpas compreensíveis. Era um final de semana qualquer e enquanto ela se depilava, distraída com o gilete roxo, feriu a pele delicada da canela. O sangue jorrou pelo o chão escuro o banheiro, enquanto ela praguejava. O grito que ela deu entregou a dor absurda. A água que corria pelo chuveiro, enquanto eu tentava estancar todo o sangue, já ganhava o tom avermelhado vivo. O choro dela naquele dia me cortou o coração. Ela parecia inofensiva, distante daquela mulher tão forte que ela sempre fora. Foi ali que eu percebi que heroínas também sangram. Foi ali que eu percebi que ela não era fraca por sangrar, me sim forte por assumir sua fragilidade quando necessário. Tomou cinco pontos no canela, sem anestesia e sem fazer careta. O machucado infeccionou e ela teve que ser privada de usar suas calças e entrar em piscinas ou cachoeiras. Mas continuava lá, de bom humor e riso fácil.

E esses são os detalhes dela. Esses são as migalhas de pão que a personalidade e a vida dela deixaram no corpo delicado que ela tem. E foi nos braços dessa mulher, embalado pelo o sono e o cansaço que eu a observei dormir por inúmeras vezes. Beijei cada cicatriz dela, amei cada detalhe sutil. Tudo nela conta uma história, tudo nela tem um verso amoroso para ser escrito e explicado. Eu poderia dizer que o conjunto corpo e tatuagens me arrebatam, mas não mais que os detalhes recheados de histórias e momentos, e as marcas que eles insistem em deixar para trás.