O moço do carro preto
Todo mundo viu, não teve nem como disfarçar. O carro parou na frente da padaria, ocupou duas vagas e de dentro dele saiu alguém tão bem vestido que me fez sentir o perfume dele a distância. Não que eu de fato tivesse sentido o cheiro, mas podia imaginar. O terno escuro, a barba farta e aquela cara de quem tá sempre correndo mas não resiste ao cheiro de sonho na padaria. Ele saiu mais relaxado do que entrou, segurando um pacote grande demais para uma pessoa só. O olhar dele cruzou com o meu quando ele estava prestes a entrar no carro e eu reprimi a vontade de sorrir, ele não. Sabe aquela cara de quem sabe que chama atenção? Foi essa a cara que ele fez. Eu preferi fingir que não vi, para qualquer emergência, eu estava sem óculos e tenho vários graus de miopia para confirmar que eu não conseguiria ver.
Mas eu o veria a distância. Não tinha como negar ou reprimir a vontade de olhar por muito tempo. Durante algumas semanas e durante a mesma faixa de horário, lá estava ele deixando seu carro rapidamente para comprar sabe-se lá o que na padaria. Ironicamente, às vezes eu estava tomando café na praça. Outras vezes, estava entretida com meu kindle e nem o via passar. No entanto, na última semana que passou, nossos olhares se cruzaram de uma forma diferente. Foi a fome que me despertou para a vontade de comer um sonho – deixei meu posto e fui até lá me servir. Ainda perdida por entre os corredores e as opções, ele apareceu. Bem vestido como sempre, com aquela aura de perfume caro. Me apressei em pegar meu sonhos e pedi um café. Não que ele me deixasse tonta, mas o café me acalmava e me deixava segura do espaço a minha volta, o que não durou muito tempo já que ele sentou-se na mesa da frente, me encarando sem pudor algum.
Sem timidez ou roteiro premeditado, ele provou o café e me observou devorar o sonho feito um passarinho. No fim, eu levantei sob seu olhar, enquanto ele ainda insistia em permanecer sentado mesmo tendo acabado sua refeição. Deixei a padaria com a certeza de estar sendo observada e nossos olhares ainda se cruzaram quando ele voltou para o carro. Alguns dias depois, ainda na mesma faixa de horário, ele apareceu; mas sem o carro e a roupa social. Sorriu, do outro lado da rua, acenando para mim como se fôssemos conhecidos a tempo. Quando balancei a cabeça, sem entender, ele levantou um pacote de sonhos e uma garrafa de café. “Você aceita?”, ele quis saber. Aceito.